O TOM NEGRO DE MATO GROSSO

Co-protagonistas na formação social

Tão importante quanto o índio para a formação da sociedade mato-grossense, é a presença dos negros, desde a época das Minas de Mato Grosso, que antecede o tratado de Madri, em 1750.

Trazidos do litoral brasileiro, tinham a função de realizar trabalhos forçados nas jazidas de ouro, descobertas pelos bandeirantes, com destaque a Pascoal Moreira Cabral Leme.

Concentrado às margens do rio Guaporé, deu-se início o erguimento da antiga capital do estado, chamada Vila Bela da Santíssima Trindade, sob o comando do Capitão-General do Mato Grosso, Antônio Rolim de Moura Tavares.

Sob a dor das chibatadas e da total condição desumana, restavam-lhes seguir o extinto da sobrevivência, fugindo em meio à densa mata, formando-se, portanto, os quilombos. Ainda que agrupados na floresta, à deriva de todos os perigos imprevisíveis da natureza, os negros continuavam sendo caçados para o retorno à vida escrava, e aqueles recapturados recebiam tratamento pior do que os demais, para que servissem de exemplo e desmotivasse quem quisesse fugir.

Muitos quilombos cresceram de forma organizada, criaram suas fortificações e se prepararam para os enfrentamentos às ações militares. Tamanho enredo-histórico se adéqua a diversas cidades mato-grossenses, com destaque à Vila Bela da Santíssima Trindade, Poconé, Acorizal, Barra do Bugres, Cáceres, Chapada dos Guimarães, Nossa Senhora do Livramento e à capital cuiabana.

Vila Bela, merece uma atenção à parte, pela árdua missão de conseguir manter viva toda a herança de seus antepassados, seja nos costumes, nas crenças e até mesmo em suas danças, tudo isso representado nas manifestações culturais, da tradicional festança julina, que ocorre anualmente, sob a proteção das ruínas da igreja da Matriz, com destaque à dança do Congo e do Chorado.

Impressionante é que todas as apresentações artísticas são ricas em informações; a dança do Congo expressa a luta de dois reinados em busca do poder soberano, já a dança do Chorado, que é da época colonial, tem uma expressão melancólica que representa o lamento do negro para sensibilizar o seu senhor a não castigá-lo.

O resgate à identidade dos quilombolas é um marco de honra a todos que se definem como tal, de modo que a existência de cada comunidade está intrinsecamente guarnecida pelo seu patrimônio imaterial, na figura de seus orixás e de suas áreas sagradas.

O progresso de Cuiabá e Várzea Grande, combinado com a alta incidência de doenças no interior do estado, de fato, foi a salvação contra o extermínio dos antigos escravos foragidos, não só de Vila Bela, mas como de outras cidades.

Por dois séculos conviveram em harmonia com os índios, construíram seus códigos de conduta, chegando a existir um reinado próximo ao rio Piolho, em Comodoro, sob o comando da rainha Tereza de Benguela. No entanto, a tranquilidade dos quilombos erguidos em Mato Grosso, teve sua paz interrompida após a década de 1970, com a chegada de fazendeiros sulistas, incentivados pelo programa do governo federal de Interiorização do País. Sem mais, nem menos, os gaúchos e paranaenses demarcavam qualquer espaço de terra e se diziam legítimos donos, com a chancela do governo. Surge, agora, o litígio envolvendo esses antigos escravos, demonstrando resistência quanto à tomada arbitrária da área ocupada.

Hoje, passados quase cinquenta anos, existem 114 comunidades remanescentes de quilombolas em todo o estado, e nenhuma possui o título de propriedade coletiva para a comunidade, documento que, além de comprovar o direito da posse e de usufruto da área de seus antepassados, reafirma a dignidade humana de cada indivíduo que ali reside.

“De acordo com Pedro Reis, Vice-Presidente do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial, em Cuiabá, pessoa detentora de um vasto conhecimento sobre o tema, informou que é de responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a incumbência de identificar, delimitar, demarcar e emitir o título da terra. Pontuou ainda, os passos para a regularização de uma comunidade quilombola: após ela se auto definir como tal, é montado um projeto de pesquisa para reconhecimento de comunidade remanescente de quilombola, e enviada para a Fundação Cultural Palmares (FCP) para emissão da Certificação. Automaticamente a FCP encaminha a Certificação ao INCRA, solicitando a regularização da comunidade, neste momento é gerado processo do RTID – Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do território, onde serão feitos diversos levantamentos. Publicado o resultado do RTID os interessados partem para a fase de contestação, vencido esse momento processual, é emitido um Decreto presidencial autorizando a desapropriação de particulares, bem como a devida indenização, por fim, a desintrusão e a emissão do título de Propriedade coletiva para a comunidade.

Segundo Pedro Reis, apenas duas comunidades estão próximas de receberem seus títulos de propriedade, quais sejam, comunidade Mata Cavalo, em Nossa Senhora do Livramento e Lagoinha na Chapada dos Guimarães.

A chegada do governo Bolsonaro trouxe receios a esse povo desprovido de qualquer prioridade na política governamental. Se antes já estava difícil, a PEC 215 (da demarcação) terá o condão de deixar mais complicada a materialização de seus direitos, porém, antes mesmo, com a mudança da oficialização de quilombos e Terras Indígenas (TIs) para o Ministério da Agricultura (antes pertencia ao ministério da Justiça), os cenários estão se projetando para uma conjuntura desfavorável a esses povos, que já vêm sofrendo sucessivas ordens de despejo.

Atualmente, as principais reivindicações desses remanescentes de quilombolas são: 1. A não aprovação da PEC 215/2000, que tem a intenção de delegar exclusivamente ao Congresso Nacional o dever de demarcação de territórios indígenas e quilombolas; 2. Celeridade na emissão de Certificação da terra ocupada; 3. Incentivo financeiro voltado para agricultura familiar; 4. Implantação e funcionamento de posto de saúde e escolas tradicionais em todas as comunidades.

A equipe da Primeira Fonte Notícias ficou encantada ao visitar a comunidade remanescente de Mata Cavalo. Conheceu o seu dia-a-dia, o trabalho na lavoura, o funcionamento do sistema escolar diferenciado, a forma simpática de receber as pessoas, mas o destaque ficou para a educação refinada e dispensada aos mais velhos.

Com mais de 60% da população auto-declarada afrodescendente, de acordo com os números do IBGE-2010, quem chega em Cuiabá, por exemplo, percebe que a presença negra é tão latente quanto à indígena, e fruto dessa convivência cafuza tem-se a essência da formação mato-grossense. Assim, indubitavelmente, os afrodescendentes são co-protagonistas na formação deste estado-líder do agronegócio e responsável pela alimentação de uma considerada parcela do mundo.

A lentidão de qualquer processo de interesse quilombola é reflexo do descaso dos governos das três esferas, que tratam o assunto sem qualquer escala de relevância.

A trajetória de luta e resistência mantém-se cada dia mais viva, pois, sabem eles o quão árduo foi sobreviver até hoje, às margens da indiferença, reivindicando aquilo que é seu, sobretudo, constitucionalmente.

Assim seguem esses filhos de Mato Grosso, alguns grupos vivendo da agricultura, outros da fabricação de produtos alimentícios ou artesanatos, e alguns inserindo o turismo em suas comunidades. Mas a hospitalidade e a preservação das características tradicionais dos antigos escravos, são marcas congêneres entre todos.

Conhecer a saga desse povo nos resta admirá-lo e respeitá-lo, pois a resistência é o grito de guerra que aprendem ainda na infância. Antes, a resistência pela liberdade, hoje pela dignidade.

  • Ocupação territorial quilombola no Mato Grosso - Século XVIII

2 comentários sobre “O TOM NEGRO DE MATO GROSSO”

    1. É nítida a despercepção da consciência situacional de nossos governantes, quanto a esse povo. Me parece que que as coisas só funcionam quando a chamada Marxiana é colocada em prática.

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